quarta-feira, 18 de agosto de 2010

PEQUENO ORATÓRIO DE SANTA CLARA, DE CECÍLIA MEIRELES




SERENATA


UMA VOZ CANTAVA ao longe
entre o luar e as pedras.
E nos palácios fechados,
entregues às sentinelas,
- exaustas de tantas mortes,
de tantas guerras! -
estremeciam os sonhos
no coração das donzelas.
Ah! Que estranha serenata,
eco de invisíveis festas!
A quem se dirigiriam
palavras de amor tão belas,
tão ditosas
(de que divinos poetas?)
como as que andavam lá fora,
pelas ruas e vielas,
diáfanas, à lua,
graves, nas pedras...?






CONVITE


FECHAI OS OLHOS, donzelas,
sobre a estranha serenata!
Não é por vós que suspira,
enamorada...
Fala com Dona Pobreza,
o homem que na noite passa.
Por ela se transfigura,
- que é a sua Amada!
Por ela esquece o que tinha:
prestígio, família, casa...
Fechai os olhos, donzelas!
(Mas, se sentis perturbada
pela grande voz de noite
a solidão da alma,
- abandonai o que tendes,
e segui também sem nada
essa flor de juventude
que canta e passa)






ECO


CANTARA AO LONGE Francisco
jogral de Deus deslumbrado.
Quem se mirara em seus olhos,
seguira atrás de seu passo!
(Um filho de mercadores
pode ser mais que um figaldo,
Se Deus o espera
com seu comovido abraço...)
Ah! Que celeste destino,
Ser pobre e andar a seu lado!
Só de perfeita alegria
Levar repleto o regaço!
Beijar leprosos,
sem se sentir enojado!
Converter homens e bichos!
Falar com os anjos do espaço!
(Ah! Se eu fora a sombra, ao menos,
desse jogral deslumbrado!)



CLARA




VOZ LUMINOSA da noite,
feliz de quem te entendia!
(Num palácio mui guardado,
levantou-se uma menina:
já não pode ser quem era,
tão bem guarnida,
com seus vestidos bordados,
de veludo e musselina;
já não quer saber de noivos:
outra é a sua vida.
Fecha as portas, desce a treva,
que com seu nome ilumina
Que são lágrimas?
Pelo silêncio caminha...)
Um vasto campo deserto,
a larga estrada divina!
Ah! Feliz itinerário!
Sobrenatural partida!




FUGA


ESCUTAI, nobres figalgos:
a menina que criates
é uma vaga sombra
fora de vossa vontade
livre de enganos
e traves.
É uma estrela que procura
outra vez a Eternidade!
Despida de suas jóias
e de seus faustosos trajes,
inclina a cabeça
com terna humildade.
Cortam-lhe as tranças:
ramo de luz nos altares.
Mais clara do que seu nome,
no fogo da Caridade,
queima o que fora e tivera:
- ultrapassa a que criates!






PERSEGUIÇÃO


JÁ PARTIRAM cavaleiros
no encalço da fugitiva.
- Não rireis, ó mercadores,
não rireis da fidalguia!
Iremos buscá-la à força,
morta ou viva!
(Dão de esporas aos cavalos,
entre injúria e zombaria,
com os olhos acesos de ira.
- Não leveis a mão à espada!
Grande pecado seria!)
E vem a monja.
Só de renúncias vestida!
Ah! Clara, se não falasses,
Quem te reconheceria?
Para onde vais tão sem nada,
Nessa alegria?






VOLTA


VOLTARAM os cavaleiros
com grande espanto na cara.
Palácios tristes...
Inútil espada...
Que grandes paixões ocultas
nas altas muralhas!
Pasmado, o povo contempla
aquela chegada...
(Longe ficara a menina
que servir a Deus sonhara,
de glórias vãs esquecida,
da família separada.
Força nenhuma
a seus votos se arrancara.
Aos pés de Cristo caía:
não desejava mais nada.)
Olhavam-se os mercadores,
com grande espanto na cara.






VIDA


DO PANO mais velho usava.
Do pão mais velho comia.
Num leito de vides secas,
e de cilícios vestida,
em travesseiro de pedra,
seu curto sono dormia.
Cada vez mais pobre
tinha de ser sua vida,
entre orações e trabalhos
e milagres que fazia,
a salvar a humanidade
dolorida.
Mãos no altar, a acender luzes,
pés na pedra fria.
Humilde, entre as companheiras;
diante do mal, destemida,
Irmã Clara, em seu mosteiro,
tênue vivia.





MILAGRES


UM DIA veio o Anticristo,
com seus cavalos acesos.
Flechas agudas,
na aljava de cada arqueiro.
Vêm matar e arrasar tudo,
com duros engenhos.
“Irmã Clara, vede, há escadas
sobre o muro do mosteiro!
Soldados de ferro!
Negros sarracenos!”
(Tomou da Hóstia consagrada,
rosto de Deus verdadeiro,
- levantou-a no alto
do parapeito...)
E, na cidade assaltada,
Não se viu mais um guerreiro:
ou fugiram a cavalo
ou caíram de joelhos.






FIM


JÁ QUARENTA ANOS passaram:
é uma velhinha, a menina
que, por amor à pobreza,
se despojou do que tinha,
fez-se monja,
E foi com tanta alegria
servir a Deus nos altares,
E, entre luz e ladainha,
Rogar pelos pecadores
em agonia.
Já passaram quarenta anos:
e hoje a morte se avizinha.
(tão doente, o corpo!
A alma, tão festiva!
Os grandes olhos abertos
uma lágrima sustinham:
não se perdesse no mundo
o seu sonho de menina!)






VOZ


E A NOITE INTEIRA, baixinho
murmurara:
“Levas bom guia contigo,
Não te arreceies de nada:
guarde-te o Senhor nos braços,
- e em seus braços estás salva!
Bendito e louvado seja
Deus, por quem foste criada!...”
E nesse falar, morria
Irmã Clara,
Tão feliz de ter vivido,
tão de amor transfigurada,
que era a morte no seu rosto
como a estrela dalva.
(“Com quem falais tão baixinho,
Bem-aventurada?”
“Com minha alma estou falando...”)
Ah! Com sua alma falava...






LUZ


POR UM SANTO que encontra,
há tanto tempo,
alegremente deixara
o mundo, de estranho enredo,
Para viver pobrezinha,
No maior contentamento,
longe de maldades,
Livre de rancor e medo,
A vencer pecados,
A servir enfermos...
Já está morta. E é tão ditosa
como quem sai de um degredo.
O Papa Inocêncio IV
põe-lhe o seu anel no dedo.
Cardeais, abades, bispos
Fazem o mesmo.
(Mais que as grandes jóias, brilha
seu nome, no tempo!)






GLÓRIA


JÁ SEUS OLHOS se fecharam.
E agora rezam-lhe ofícios.
(Tecem-lhe os anjos grinaldas,
No divino Paraíso.
“Pomba argêntea!” – cantam.
“Estrela claríssima!”)
- Irmã Clara, humilde foste,
Muito além do que é preciso!...
- O Caminho me ensinaste:
o que fiz, foi vir contigo...
(Assim conversam, gloriosos,
Santa Clara e São Francisco.
Cantam os anjos alegres:
Vede o seu sorriso!)
Que assim partem deste mundo
os santos, com seus serviços.
Entre os humanos tormentos,
são exemplo e aviso,
Pois estamos tão cercados
De ciladas e inimigos!
“Santa! Santa! Santa Clara!”
os anjos cantam.
( E aqui com Deus, finalizo)





 
“Pequeno Oratório de Santa Clara”, Cecília Meirelles. Obra Poética, Rio de Janeiro. Companhia José Aguiar Editora. 1967 2ª ed., p623-631.

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